Já vinhamos criticando a psiquiatria, ciência que vem abusando de suas "certezas" com o risco de criar uma geração de viciados em suas drogas sintéticas. Esta ciência revela-se extremamente preconceituosa ao categorizar as pessoas de acordo com um suposto comportamento dito "normal", e assim tolhe a liberdade de cada um ser o que é. Compartilhamos aqui uma excelente entrevista da Revista Fórum sobre o assunto.
Medicar para controlar
“Fórum Sobre Medicalização da Educação e Sociedade” exalta a
importância de questionamentos e discussões sobre os diagnósticos
precoces e massivos dentro das escolas e propõe a valorização da diversidade humana
Por Carolina Rovai
“Venha brincar e desmedicalizar a vida. Se eu não posso brincar essa
não é a minha luta!”. Este é o lema do “Fórum Sobre Medicalização da
Educação e Sociedade”. Criado em 2010, mas com raízes em 2007 quando um
grupo de docentes e profissionais da saúde, preocupados com a redução
dos problemas de escolarização a problemas de ordem orgânica, como
distúrbios e transtornos, começou a empreender uma luta contra um
Projeto de Lei, que propunha a contratação por parte de Prefeitura de
São Paulo de equipes terceirizadas compostas por especialistas em
diagnóstico e tratamentos de transtornos. Ou seja, que culminaria em uma
disseminação do diagnóstico massivo de dislexia nas escolas do
município.
Aos poucos, somaram-se a luta diversas pessoas e entidades das áreas
da saúde, educação, direitos humanos e direitos da criança e do
adolescente, o que levou a sua ampliação para além do referido projeto –
e de outros que se seguiram com ele. Assim, foi criado o Grupo de
Trabalho Interinstitucional sobre Medicalização, que teve como um de
seus desdobramentos justamente a promoção do I Seminário Internacional
“A Educação Medicalizada: Dislexia, TDAH e outros supostos transtornos”,
ocorrido em São Paulo, entre os dias 11 e 13 de novembro de 2010.
Neste seminário, que contou com aproximadamente mil participantes, foi lançado o Manifesto
do “Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade”. Atualmente, o
Fórum realiza seminários anuais, com participação internacional de
profissionais que estudam sobre o assunto e propõem ações
não medicalizantes. O principal objetivo é que a população comece a
participar desse diálogo para melhor se apropriar do movimento de
valorização e respeito à diversidade humana. Em entrevista à Fórum,
a psicóloga Jaqueline Kalmus e as fonoaudiólogas Lucia Masini e Vera
Teixeira, membros do Núcleo Metropolitano de São Paulo, esclarecem e
explicam possíveis questionamentos sobre a execução e o objetivo do
Fórum.
Fórum – Com quais objetivos nasce o Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade?
Kalmus, Masini e Teixeira - O Fórum é um movimento
social que articula entidades, grupos, representantes de outros
movimentos e pessoas com os seguintes objetivos: levar a cabo a crítica e
enfrentamento dos processos de patologização da vida e da política;
acolher as pessoas que sofrem e vivenciam esses processos; construir
formas de atuação não-medicalizantes. Nossas lutas ocorrem em vários
campos: no acadêmico-científico, no legislativo, no das políticas
públicas, junto aos profissionais da saúde e da educação e à população
em geral. Também nos articulamos com movimentos contra a medicalização
de outros países, em especial na América Latina.
Fórum – Foucault já trabalhava com os termos: patologização e
medicalização como formas modernas de dominação sobre seres. Até que
ponto o Fórum acredita que problemas sociais são transferidos para o
individual e tratados como doença?
Kalmus, Masini e Teixeira - Esse é o cerne da
questão da medicalização: a redução do social e político ao individual.
Essa é uma prática recorrente, que resulta na responsabilização dos
indivíduos pelas mazelas a que estão submetidos.No campo da educação
isso é muito claro: embora tenhamos uma escola que não garante uma boa
formação dos alunos continua-se a dizer que essa má formação seria
causada por uma série de transtornos de ordem bióloga ou psicológica. Na
sociedade atual e, principalmente, em nosso cotidiano profissional, em
diferentes especialidades, observa-se uma tendência em normatizar e
padronizar os corpos. Na infância a normatização recai sobretudo no
tempo das aquisições: do andar, do falar, do ler, do escrever, do
compreender e obedecer regras. E a análise disso sobre cada criança tem
deixado de lado seu contexto sócio histórico. É importante ressaltar que
não estamos falando necessariamente de problemas sociais e sim de
características sociais. Problemas sociais estão sendo individualizados,
entendidos como transtornos e características sociais estão sendo
tomadas como problemas. E tudo recai no indivíduo. Esse processo ganha
uma dimensão ainda maior quando a criança passa a frequentar a escola.
Se ela não tem bons resultados, ao invés de olharmos para seu contexto
educacional (que seria, por exemplo, um problema social) investigamos
sob um olhar medicalizante. Quando olhamos para sua família (dinâmica,
estrutura, características enfim) a tomamos como problema. E tudo recai
sobre a criança que, de aprendiz passa a portador de diferentes
transtornos. Com adolescente, adulto e idoso, o raciocínio é o mesmo: há
padronização em cada ciclo de vida. Na fase adulta, por exemplo, tudo
gira em torno da produtividade dentro do sistema capitalista: se o
sujeito não dá conta de todas as exigências de produção impostas a ele e
fracassa ou sucumbe, a explicação hegemônica é sempre individualizante:
ele sofre de “transtorno de ansiedade generalizada”, “burn out” etc. Ou
seja, não se questiona o processo que produz esse fracasso nem se
acolhe diferentes formas de estar no mundo. Ou seja, estamos longe de
ver a diversidade humana ser de fato e de direito reconhecida.
Fórum – Atualmente, que tipos de diagnósticos são mais comuns entre crianças e jovens? E quais são seus principais riscos?
Kalmus, Masini e Teixeira - Os diagnósticos mais
comuns são aqueles dados a crianças que apresentam problemas de
escolarização – seja da ordem do aprendizado, seja da ordem do
comportamento. A elas são atribuídos toda uma série de transtornos: os
transtornos de atenção com e sem hiperatividade (TDA/TDAH), os
transtornos de linguagem, os problemas de processamento auditivo central
(PAC), transtornos de obediência (TOD=transtorno opositor desafiante),
entre tantos outros. É bom que se diga que não estamos sendo negligentes
com a existência de dificuldades de fato de algumas crianças e
adolescentes em seus processos de vida. Só não admitimos que essas
dificuldades sejam analisadas exclusivamente na ótica individual. Os
avanços da biotecnologia têm levado a isso: um olhar ultra focado no
corpo e cada vez mais específico – estamos na era da medicina molecular –
tem nos afastado das análises contextuais e que são importantes para o
entendimento do que acontece em cada caso. Além disso, vemos que o
diagnóstico está se estendendo para crianças cada vez mais pequenas.
Ora, parece no mínimo estranho – além de perigoso – atribuir
hiperatividade e medicar uma criança de 3 anos.
Fórum – Como o Fórum avalia diagnósticos como dislexia e TDAH?
Kalmus, Masini e Teixeira - Esse tipo de
procedimento diagnóstico cria um rótulo – marcado no corpo – que
determina a pessoa em todos os contextos em que vive. Além disso, a
comunidade científica vem discutindo o próprio TDAH, enquanto
transtorno, e a validade desses diagnósticos. Temos conhecimento de uma
pesquisa realizada no Canadá que aborda a revisão sistemática da
produção acadêmica sobre tratamento de TDAH, num período de três
décadas, na qual apenas 12 (doze) dos 10 000 (dez mil) trabalhos
publicados preenchem critérios mínimos de cientificidade. É um dado que
deve ser considerado. Outro aspecto a ser ressaltado é a avaliação
realizada precocemente e que sugere sinais de risco tanto para a
dislexia como para o TDAH. Essa conduta pode gerar uma expectativa de
uma futura “doença” nos pais, na escola e na própria criança,
extremamente nociva, de tal forma, que poderá comprometer a vida dessa
criança. Ao invés de sugerir sinais de risco, devemos pensar que há
diferentes modos de aprender e de estar no mundo que devem ser
compreendidos e respeitados.
Fórum – Quais são os principais remédios utilizados para
estes casos? E quais danos estes podem causar? Expliquem, por favor, os
males que medicamentos como o Metilfenidato podem trazer para as
crianças.
Kalmus, Masini e Teixeira - Em primeiro lugar, nunca
é demais lembrar que medicalizar não implica necessariamente
em medicamentalizar (uso abusivo de medicamentos) ainda que este seja um
importante processo de medicalização. Nos casos diagnosticados e
tratados como transtornos de TDAH é utilizado o Metilfenidato, um tipo
de anfetamina, com nomes comerciais de Ritalina e Concerta. Este último
também é receitado em casos diagnosticados como dislexia. Também temos
conhecimento de uma nova medicação o dimesilato de lisdexanfetamina,
cujo nome comercial é Venvanse utilizado nesses casos. As anfetaminas
têm o efeito de estimular o sistema nervoso central e podem causar
dependência. Há relatos de casos de crianças que ficam muito mais
agitadas e outros em que o efeito é de torná-las apáticas e sonolentas.
Será que este efeito é propiciador de atenção e aprendizagem? Um aspecto
curioso é que as orientações médicas quanto ao uso do metilfenidato
indicam que o remédio poderá ser retirado no período de férias.
Fórum – Hoje o Fórum conta com quantos núcleos? Como nasceram, e como funcionam?
Kalmus, Masini e Teixeira - Atualmente há dezenove
(19) núcleos constituídos e situados em todas as regiões do Brasil:
Pará, Rondônia e Acre, Bahia, Natal, Pernambuco, Curitiba, Irati e
região, Baixada Santista, Campinas, Sorocaba, Metropolitano de São
Paulo, Assis, Laranjal Paulista, Belo Horizonte e região metropolitana,
Triângulo Mineiro, Poços de Caldas, Rio de Janeiro, Leste de Minas
Gerais e Brasília. Esse número tende a crescer porque há outros em
constituição, como em São José do Rio Preto (SP) e Uberlândia (MG). A
criação de núcleos sempre foi incentivada pelo Fórum na perspectiva de
ampliação do movimento, levando em consideração o crescente aumento da
medicalização e da patologização das situações do cotidiano em nosso
país. Mas, principalmente, para que as realidades e necessidades locais
pudessem ser contempladas e que as pessoas se organizassem na direção da
discussão e divulgação de nossas ideias e também para a criação de
dispositivos para o enfrentamento da medicalização em seus contextos
específicos.
Fórum – Em sua visão, quais são as consequências da
medicalização da vida, sobretudo na infância? As pessoas passam a
enxergar os medicamentos como seus “salvadores”?
Kalmus, Masini e Teixeira - Bom, parece-nos que o marketing da
indústria farmacêutica está empenhado em fazer com que as pessoas assim
os enxergue. Mas temos contato com muitas crianças e pais que sofrem
processos de medicalização e o fazem com muita dor. Porque ele vem
acompanhado da produção de um rótulo do qual é muito difícil
desvencilhar-se; a criança se torna “a doente” – quando não, “a doença”.
Nesse sentido, tanto a criança como seus pais se sentem responsáveis
pelos seus problemas escolares, por exemplo. Algumas crianças passam
inclusive a agir tal como se espera que elas o façam. Além do quê, o
rótulo pode deixar marcas perenes. Nesse sentido, evidentemente elas
precisam de ajuda. Precisam de acolhimento e de ajuda para que seja
rompido esse ciclo.
Fórum – Qual a alternativa que propõem à medicalização?
Kalmus, Masini e Teixeira - Propomos uma
outra lógica. Atualmente, o movimento medicalizante tem se esforçado
para explicar que alguém não aprende ou não produz o suficiente porque é
disléxico, autista, ou tem TDAH, ou TOD, ou problemas de PAC, ou TAG e
tantos outros novos transtornos que surgem. Nossa alternativa parte da
seguinte premissa: todos são capazes de aprender e produzir se
considerados seus diferentes modos de ser, agir e aprender. Ao invés de
criarmos leis ou capacitarmos profissionais da educação para a
identificação precoce de patologias e propor a avaliação e o tratamento
pelos profissionais da saúde na escola, nosso esforço se dá no sentido
de exigir que as políticas públicas sejam implementadas de fato na
direção da construção coletiva de uma escola de qualidade em que a
diversidade humana seja contemplada. Investimos nossos esforços para que
profissionais da educação e também da saúde possam olhar para seus
alunos e pacientes buscando compreendê-los como sujeitos, com suas
histórias de vida para encontrar alternativas em que a responsabilidade
por seu sucesso seja coletivizada.
(Foto: Ondřej Karlík)
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